Episódio 4: Crime da mala de 1908
- podcrimessa
- 14 de jan. de 2022
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Elias Farhat e seu irmão Abrahão formavam uma das tantas duplas de comerciantes estabelecidos na rua 25 de março em SP. Eles moravam no piso superior de sua loja de tecidos e também eram donos e uma fábrica de calçados. A empresa, que havia surgido em 1899, se chamava Elias Farhat & Irmão mas era comercialmente denominada Casa Síria. Tudo ia bem e a prosperidade parecia ter-lhes encontrado até que Michel Traad, um jovem de 21 anos entra na vida da família.
Nascido em 1885 em Beirute (que na época era na Síria embora hoje seja a capital do Líbano), Michel Traad vinha de uma família boa: não eram riquíssimos mas também não viviam em situações de pobreza. Inclusive o moço era muito estudado, falava várias línguas e os relatos dizem que se vestia muito bem. Por isso, quando decidiu ir ao Cairo em 1903, pôde contar com a ajuda os seus familiares. Lá ele trabalhou em um companhia francesa como guarda-livros (contador) mas a empresa acabou fechando. Três anos depois, em 1906, Traad chegou em São Paulo aos 21 anos. Portando uma carta de recomendação, logo conseguiu um emprego na rua 25 de março - uma rua famosa já em 1908, embora São Paulo tivesse pouco mais de 250 mil habitantes, que na época era a principal no ramo de tecidos e armarinhos. A verdade é que essa rua sempre foi bem movimentada por ser paralela ao rio Tamanduateí onde transitavam as embarcações vindas de Santos e também por estar bem próxima ao Porto Geral - a ladeira Porto Geral. Enfim, voltando à história do Michel, depois de um tempo, a loja em que ele trabalhava enfrentou um crise financeira e mais uma vez ele foi despedido. Então, ele passou a trabalhar como guarda-livros (como eram chamados os contadores) em um banco inglês (River Plate Bank) e, cerca de 5 meses depois, aceitou uma nova proposta e foi contratado por outra loja na 25 de março, a loja Elias Farhat & Irmão. Michel e Elias acabaram se aproximando e dando início à uma amizade. Depois de uma visita aos familiares na Síria, Michel volta ao Brasil e inicia uma sociedade comercial com o irmão de Elias, José Farhat - eles pretendiam abrir uma loja de vestidos e moda masculina. Traad parte, então, para Paris em busca de mercadorias e inspiração para seu novo negócio. Além da vida profissional, à essa altura a vida pessoal de Michel também estava bastante movimentada. Carolina Farhat encantou e dominou o coração de Michel. Só tinha um problema: Carolina, de 23 anos (a mesma idade de Michel), era casada com Elias Farhat, 11 anos mais velho e um dos melhores amigos de Traad. Eles haviam se casado em 1899 quando a moça tinha apenas 15 anos. Ela vinha de uma família italiana mais vulnerável financeiramente e havia trabalho em fábricas do Brás. O padrasto dela era um comerciante italiano e assim acabou conhecendo Elias. Mediado pelo padrastro de Carolina, o casamento aconteceu algum tempo depois: era vantajoso tanto para ela quanto para Elias. Ela iria ascender muito socialmente, teria uma vida melhor. Ele teria uma esposa jovem e bonita para ostentar diante da sociedade. Mas a mãe da moça e os irmãos de Elias não gostaram muito dessa união: nenhumas das familias aceitou muito bem.
A família dela era italiana, a dele, síria e só isso já era um motivo dos grandes: casamentos exógenos (entre pessoas de diferentes grupos raciais) eram muito mal vistos. Toda essa situação criava um ambiente muito paranóico entre o casal: as famílias difamavam um para o outro e isso gerava um clima de desconfiança nada saudável para o relacionamento. Para piorar, Elias entrou em crise financeira: havia importado uma grande quantidade de mercadorias e não conseguia dar vazão a esse estoque. Nesse contexto, Carolina encontra a amizade de Michel e os dois passam a trocar cartas: ela relatava sua angústia diante de tudo o que passava e era acolhida pelo moço. Quanto mais o tempo passava, mais crescia a admiração e o interesse de Traad pela senhora Farhat. Ela negou sempre que houvesse algum envolvimento além da amizade mas pelos Sem compromisso com moça alguma, Michel decidiu que ia ter Carolina para ele: Elias precisava sair de cena.
Era quarta feira, 02 de setembro de 1908 quando Traad pediu que Elias o encontrasse para discutirem sobre a empresa. O local de encontro foi um sobrado ali no centro de São Paulo mesmo onde Traad morava e tinha um pequeno escritório - ficava na rua Boa Vista na altura do número 39. Ao chegar, Elias senta numa cadeira oferecida por Michel e, quando menos espera, é surpreendido pelas costas e enforcado com o auxílio de uma corda. Diante do corpo sem vida do amigo, Traad dá sequência à um plano muito bem arquitetado. Primeiro, ele faz uma visita à familia de Elias e finge surpresa ao saber que o homem desapareceu. Em seguida, acompanha os seus familiares até a delegacia para relatar o sumiço. Então, volta ao sobrado e dá início à uma das partes mais macabras do plano: o esquartejamento.
Dias antes, Michel havia comprado uma mala amarela na Ladeira Porto Geral e agora era preciso fazer o corpo caber dentro da mala. Usando objetos cortantes e com bastante paciência e cuidado, esquartejou o cadáver. Traad tinha pensando em cada detalhe: tinha mandado fazer uma caixa de zinco para colocar o corpo e depois colocaria a caixa na mala. A caixa havia sido encomendada de um italiano e acabou ficando sem tampa- Michel até promoteu voltar ao estabelecimento para colocar a tampa mas nunca mais apareceu. O assassino deu um jeito de descer até Santos com a bagagem. Lá ele se hospeda num hotel, coloca uma etiqueta com um nome falso na mala e pede que um amigo dentista guarde o volume alegando que voltaria para pegá-lo. No mesmo dia mais tarde ele buscou a mala e embarcou no vapor Cordillère que **faria uma escala no Rio e então seguiria para França. Durante o embarque uma coisa saiu do planejado: a mala foi encaminhada ao porão do navio mas ele precisava que a mala ficasse com ele no convés para poder colocar a última parte do plano em prática. Argumentando em frânces (já que o navio era frânces), ele convence a tripulação a deixar a mala com ele na cabine - ele disse que precisava de alguns pertences que estavam lá dentro. O mau odor vindo da mala chamou a atenção e foi rapidamente esclarecido por Michel: ele estava transportando queijos, salames e algumas conservas que, segundo ele poderia ter se aberto dentro da mala, por isso o cheiro ruim. Num primeiro momento essa história convenceu e o capitão do navio pediu que, pelo menos, a mala fosse colocada em canto isolado por conta do odor e seguiram viagem.
Mas tinha um crimizeiro acompanhando isso tudo e achou bem suspeito. O nome dele era Jean Joackim e ele ficou meio que vigiando o Michel. Quando já estavam próximos do Rio de Janeiro, O Jean viu Michel fazendo um esforço enorme para tentar jogar a mala no mar e foi a cereja do bolo para a tripulação: ficava nítido que tinha algo errado com aquela mala e a história do salame não colava mais. Jean impediu Traad de jogar a mala e chamou pelo capitão do navio. A mala foi aberta e a surpresa foi grande: um corpo em pedaços sido encontrado. Traad ficou detido no navio por conta de um ordem de prisão dada pelo capitãomlu até que chegassem em terra firme e pudesse ser interrogado pela polícia. Num primeiro momento, o criminoso apelou para uma desculpa esfarrada: dois imigrantes haviam o obrigado, sob pena de ameaças, a carregar a mala e encaminhá-la para a Europa. Segundo ele, os homens disseram que a vítima tinha sido morta a mando de um homem poderoso e pediram que Michel comprasse uma mala e deixasse a disposição deles, caso contrário, também morrerria. Depois de alguns dias, os supostos homens levaram a mala até ele e mandaram despachar em Santos como de fato ele estava fazendo. Ele alegou que nem sabia quem era o homem esquartejado e contou que, quando recebeu a mala, ela já estava devidamente fechada então ele não teria visto nada. Ele descreveu os dois homens para a polícia. Foi enviado para São Paulo no vagão postal da Central do Brasil e durante o trajeto tentaram atacar Traad. Em SP ele continuou negando a ponto de o delegado responsável, o João Batista de Souza, acusar e prender outros dois comerciantes da rua 25 de Março: Jorge Bassila e Jorge Abuchara. Essa acusação se baseou no fato de que Elias Farhat e esses dois comerciantes já tinham se envolvido judicialmente além de que os dois Jorges também haviam feito uma viagem a Santos nas proximidades da data do assassinato de Elias. Algum tempo depois a viagem foi provada ser falsa, Bassila e Abuchara não tinham a Santos - embora a questão judicial fosse verdadeira. Sem maiores evidências, eles são liberados. Carolina foi intimida a depor em 07 de setembro de 1908 e negou todas as acusações de que teria participado do crime. O depoimento dela foi tão longo a ponto de ela passar a noite na delagacia e ser liberada apenas no dia seguindo, 08 de setembro. A viúva deu explicações sobre as cartas trocadas com Michel que a polícia havia encontrado - inclusive em um delas Carolina contava que agora estava feliz porque tinha sido honesta com o marido e contado sobre os incômodos que a família lhe causava. A moça também contava que Elias a havia ouvido com atenção e prometido que não deixaria mais a família interferir em sua felicidade. Em ambas as cartas lidas pelo delegado, não há nada além da formalidade: não há afeto, carinho ou evidências de uma suposta traição. Uma coisa curiosa aqui é a forma como Carolina assinava as cartas: em uma ela assinou C.F (provavelmente de Carolina Farhat) mas na outra ela assinou “Madame Daart” que nada mais é que um anagrama de “Traad”. Enfim, diante de tudo, a polícia não tinha um pingo de dúvidas que Michel era culpado mas precisavam de uma confissão ou prova para condená-lo. Para isso, no mesmo dia a noite o delegado convoca Carolina novamente e a propõe uma acariação com Traad: ela em pessoa pediria a ele que contasse a verdade para livrá-la de acusações injustas. Apesar de um pouco receosa, a moça aceita mas ainda assim Michel não confessa. Ele pede então que tenha uma conversa a sós com Carolina e o delegado concede. Não se sabe o que aconteceu ou foi dito nessa conversa mas o fato é que depois dela, Traad confessa o crime, conta em detalhes e ainda lamenta que se tivesse soldado a caixa de zinco de forma correta e com tampa, nunca teria sido pego. Não deu maiores explicações e motivação mesmo tendo tido direito à uma conversa com o secretário da Justiça, Washington Luis, escolheu o silêncio e não deu qualquer motivo para ter cometido o crime alegando que isso era uma questão de honra e que falar só causaria mais exposição à Carolina.
Os requintes macabros que compoem o crime - a falta da cabeça e uma possível maculação (a qual não consegui resgistros que provassem) foram agravantes no julgamento. Mas quem também teve que lidar com as consequências foi Carolina. Intimada a depor, em 10 de setembro de 1908, ela acabou detida na delegacia sob suspeita de cúmplice: o juiz responsável alegou que a jovem viúva não deixava dúvidas de envolvimento com Michel por conta das cartas - o que causou muita comoção popular já que o grande público se posicionou a favor da moça. Um dia depois, Carolina foi contemplada com um habeas corpus e só voltaria às manchetes na data do seu julgamento. Nessa ocasião, se formou uma aglomeração nas imediações do fórum a ponto de ser necessário deslocar força policial para manter a ordem na região. Carolina entrou no fórum de braço dado com a mãe: ambas estvam trajadas em vestes pretas de luto. Dentro do fórum uma platéia aesperava: jornalistas, advogados e estudantes ocupavam o espaço. Primeiro a acusação discursou e tentou plantar como evidência o fato de Michel ter visitado a casa da família depois de matar Elias além de tentar usar as cartas como prova do envolvimento dela. Seu advogado, a época o famoso Alfredo Pujol, discursa a seu favor e convenceu de que, além de terem sido mal interpretadas, as supostas cartas de amor não provavam nada. O fato é que realmente não houve nenhuma prova ligando Carolina à autoria do crime - apesar de relatos dizeram que sim, eles tinha uma proximidade nada comum para uma jovem casada e um moço solteiro como passeios na praia à dois, cartões postas e mesmo as trocas de cartas - e ela conquistou a inocência por unanimidade.
Traad não teve como escapar: era reú confesso com provas concretas de suas ações. Foi condenado a 25 anos de prisão - só não chegou à pena máxima de 30 anos porque os jurados reconheceram que seu comportamento anterior ao crime era exemplar. Na penitenciária se portava com um ar de superioridade. Ele escreveu um diário sobre o dia que embarcou no Cordillère ironizando os acontecimentos e personagens envolvidos na história - inclusive satirizando um momento em que, segundo ele, duas senhoras apontavam um retrato dizendo que “realmente tem cara de assassino” porque pensavam ser uma foto do Michel mas era, na verdade, de Elias. Um de seus textos publicados ganhou até anúncio no jornal: “O crime da mala ou um criminoso inocente por Michel Traad”. Além disso, ele escreveu dois livros, sendo um deles denunciando a situação carcerária do Brasil e explorando a psicologia dos presos chamado As Evasões Célebres da Cadeia Pública de São Paulo. Depois de passar 16 anos preso, Traad ganhou a liberdade mas, por envolvimento com drogas, foi preso novamente e expulso do país.
Vinte anos depois um novo crime da mala aterrorizou o porto de Santos e os boatos logo começaram: só podia ser Michel Traad de volta da Europa. Mesmo depois de tanto tempo, o assassino ainda não havia sido esquecido. Mas esse crime não foi autoria dele, na verdade, não ha registros de que Michel tenha pisado no Brasil novamente.








Já conhecia esse caso? Nos conte o que achou nos comentários! Até o próximo episódio.
Bibliografia: Wikipedia, Uol, Livro O crime da galeria de cristal e os dois crimes da mala - Boris Fausto.
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